O olhar ganhou significados inéditos para Elaine Luzia dos Santos, 33 anos, estudante de Medicina da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), após um Acidente Vascular Cerebral (AVC) que acarretou na perda dos movimentos e da fala, uma condição de tetraparesia. Agora, ela se comunica com professores, colegas da turma, pacientes, familiares e amigos praticamente com o olhar. É a primeira pessoa com tetraparesia a cursar Medicina no Brasil.
Em 2012, quando ingressou no curso de Medicina no campus de Cascavel, Elaine já era formada em Farmácia pela mesma instituição estadual. Segundo ela, depois da conclusão do primeiro curso, em 2010, a Medicina parecia uma continuação natural. Para realizar o sonho, fez um ano de cursinho, que contribuiu para a aprovação no vestibular.
Durante a graduação, além das aulas curriculares, a estudante fazia parte de um grupo de pesquisa coordenado pelo professor e doutor Allan Araujo, coordenador do curso de Medicina. Além disso, pleiteava uma vaga no programa de Mestrado em Biociência da Unioeste. No entanto, no terceiro ano, em novembro de 2014, a estudante sofreu esse AVC, que levou à tetraparesia. Mesmo com todas as dificuldades, ela não perdeu a disposição para ir atrás dos seus sonhos, enfrentou e se adaptou à nova realidade.
Enquanto ainda estava na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), a estudante recebeu a visita de um colega de turma, que lhe apresentou uma ferramenta chamada “prancha alfabética”, que possibilitaria que ela falasse e se expresse, sem nem mesmo utilizar as cordas vocais. A ferramenta consiste em uma tabela, dividida em cinco linhas, cada uma contendo um grupo de letras. Para formar as palavras e frases, Elaine pisca quando a intérprete diz a letra necessária para a construção daquilo que quer comunicar.
O modelo original da ferramenta sofreu algumas alterações para otimizar o seu uso e facilitar a comunicação do cotidiano. Com estas pequenas mudanças no modelo, Elaine dominou e memorizou os grupos de letras em cerca de uma semana e dessa forma já podia se conectar de maneira mais eficaz com as pessoas ao seu redor.
APOIO PEDAGÓGICO – O retorno às atividades acadêmicas, em setembro de 2015, não foi uma tarefa fácil. A Unioeste, por meio do Programa de Educação Especial (PEE), acompanhou todo o processo. “Fizemos algumas reuniões com o colegiado e mostramos que ela tinha condições de concluir esse curso. A dedicação dela mostrou que era possível, inclusive convenceu a todos os docentes e os alunos do curso que é possível”, explica Ivã José de Paula, do PEE.
Elaine será a primeira médica do Brasil a se formar com a condição física que apresenta. De acordo com o coordenador do curso de Medicina, o colegiado buscou experiências de outras universidades em situações semelhantes, mas que foi difícil encontrá-las. “Nós fomos atrás de ver essas experiências, mas elas praticamente inexistem, são poucas no mundo com alunos de Medicina. Então, nós mesmos teríamos que ir atrás para resolver a situação”, comenta Araujo.
A fim de se adaptar para as necessidades apresentadas por Elaine, o curso buscou a Assessoria Jurídica para entender os procedimentos legais e as legislações que deveriam ser cumpridas a fim de formar a estudante, que sempre fez questão de participar de todas as atividades acadêmicas, tanto as de cunho teórico, como prático. Além das estruturas adaptadas, como uma sala especial, os procedimentos de avaliação foram remodelados.
“Existe uma legislação própria para alunos em condições especiais. A Elaine, por exemplo, não tinha condições de fazer um procedimento em um paciente, mas ela possui total capacidade de descrevê-lo. E as avaliações dela sempre foram muito boas, o aproveitamento foi muito satisfatório durante toda a graduação”, diz Araujo.
Para atender a estudante nas aulas online e presenciais, nos atendimentos dentro do Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP) e nas visitas aos pacientes, a Unioeste disponibiliza docentes de atendimento educacional especializado. Já estiveram com Elaine as pedagogas Vanderlize Simone Dalgalo, Aline Cristina Paro, Graciolinda Santana da Rosa, Silvia Elaine Bertuol, Letícia Nunes Goulart, Marciana Pelin Kliemann e quem a acompanha hoje são Clarice Fabiano Costa Palavissini e Michele Lopes Leguiça, que está com Elaine há um mês.
Michele, que veio do Rio Grande do Sul especialmente para trabalhar com Elaine, destaca como a força de vontade e a dedicação da estudante fizeram ela ser incluída no ambiente acadêmico, participando de todas as atividades de maneira regular e tendo um bom relacionamento com professores e colegas. “A persistência, a força e a vontade dela fizeram com que ela se comunicasse muito bem. Ela se faz entender, não apenas com os olhos, mas também com o corpo”, explica.
E aos poucos a estudante foi sendo inserida em algumas matérias. "Ela não sabia em quanto tempo ia conseguir terminar o curso, mas foi realizando uma após a outra e nunca desistiu”, destaca a irmã de Elaine, Elionésia Marta dos Santos. “Hoje a gente olha para ela na reta final do curso e é surreal, como se fosse uma história que estão me contando, tantos altos e baixos, tantas dúvidas que realmente a gente fica mais do que feliz”.
INSPIRAÇÃO – E todos que convivem com Elaine destacam a inspiração. “Ela não sente o tamanho da proporção, a gente ficou no pé dela falando para mostrar a história dela porque é incentivadora, mas para ela é normal, ela escolheu ser normal”, diz Isabella Alves Pereira, cuidadora da estudante.
Mesmo durante o período da pandemia ela optou por continuar as atividades no HUOP. O colegiado ficou muito preocupado com a situação da estudante, que faz parte do grupo de risco e teria que desenvolver atividades dentro de um hospital cheio de pacientes infectados. Entretanto, mais uma vez, a acadêmica não se deixou vencer.
Enquanto exerceu o trabalho de supervisão das atividades de Elaine no HUOP, a professora Rubia Bethania percebeu que a inclusão da estudante no processo foi natural. “No internato de atendimento dos pacientes a gente trata tudo com muita naturalidade, a Elaine está inserida em um contexto de ensino com muita naturalidade, como as coisas devem acontecer. Ela tem a questão intelectual muito apurada e é muito inteligente, as limitações são apenas de mobilidade, então criamos uma dinâmica para que pudéssemos inseri-la com a maior naturalidade”, explica.
A docente comenta que no início tinha receio de como seria construída a relação entre as duas. “Eu tinha um pouco de medo em saber como ela iria se abrir comigo. Eu precisava deixá-la à vontade e desenvolver laços, pois eu iria ficar muito tempo com ela, além de ajudá-la a se locomover e a se posicionar na cadeira. Eu precisava entender qual era o limite dela. E ela me ensina todos os dias a perceber o olhar de uma maneira diferente, a perceber como ele possui diferentes significados”, complementa.
ATUAÇÃO NA MEDICINA – Com a colação de grau marcada para maio, a estudante já escolheu a área em que vai se especializar e que se vê atuando no futuro: radiologia, na produção de laudos médicos. A escolha preza pela independência na hora da atuação profissional. “É uma área na qual eu posso atuar usando todo o meu conhecimento sem depender tanto das pessoas”, diz.
Durante os anos de graduação, o que mais marcou a estudante foi a relação que ela teve com os pacientes durante as aulas práticas e estágios. “O que mais recordo é o carinho com que os pacientes me tratam. Eles me incentivam todos os dias a continuar”, comenta.
Elaine é uma grande inspiração também para o irmão, Mário Lucas do Santos, que é médico. “É até difícil descrever. Ela é uma pessoa fora de série, desde antes do AVC ela sempre foi uma pessoa alegre e que busca excelência em tudo que faz. Eu confio cem por cento no diagnóstico que ela faz, inclusive quando eu estou em dúvida em algum caso a gente conversa junto e até discutimos”, aponta.