"Oscar de Curitiba": MIS-PR contribui para resgate da memória e produção de filmes

No Paraná, diversas produções já se valeram do acervo do Museu da Imagem e do Som do Paraná para trazer à tona fragmentos do passado e recontá-los sob novas perspectivas. Uma delas é a história do Festival Tribunascope, o “Oscar de Curitiba”.
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03/03/2025 - 09:40
Editoria

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A vitória do filme “Ainda Estou Aqui” na categoria Melhor Longa Metragem Internacional no Oscar neste domingo (2) trouxe à tona uma discussão fundamental para o cinema: a importância da memória visual e fotográfica na construção de narrativas. A obra, estrelada por Fernanda Torres e Selton Mello, utiliza registros familiares e fotografias para compor sua ambientação e reforçar o peso do resgate histórico. O processo dialoga diretamente com o trabalho desenvolvido pelo Museu da Imagem e do Som do Paraná (MIS-PR), que tem sido um importante guardião de acervos e referência para pesquisadores e cineastas.

No Paraná, diversas produções já se valeram do acervo do MIS-PR para trazer à tona fragmentos do passado e apresentá-los sob novas perspectivas. Um desses casos é o livro “Tribunascope – de calçada da fama à guia da calçada: memória de um festival internacional de Curitiba”, dos historiadores Vidal Costa e Christina Pinto, da editora Factum. Os autores resgatam a história do Festival Tribunascope, o “Oscar de Curitiba”, evento que premiou produções nacionais e internacionais de 1960 a 1965, mas que foi gradativamente esquecido ao longo das décadas.

A pesquisa de Vidal e Christina teve início em 1992, quando buscavam o tema apropriado para o trabalho de conclusão de curso em história, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Apaixonados por cinema, gostaram do tema proposto em uma conversa com o historiador e galerista Marco Mello, que revelou para eles a curiosa história de um festival internacional realizado em Curitiba na virada dos anos 50 para 60.

A partir de diálogo com o jornalista Aramis Millarch, que noticiou os eventos do Tribunascope na época, os jovens passaram a conhecer mais sobre os anos perdidos do festival. Também buscaram informação em curso realizado por Valêncio Xavier e Jean-Claude Bernadet nas antigas dependências da Cinemateca de Curitiba. Contudo, foi numa missão investigativa bem sucedida na sede da então TV Iguaçu, o canal 4, que os pesquisadores encontraram dados relevantes.

O historiador Vidal Costa detalha como, durante suas pesquisas, teve acesso a documentos originais da época, como notícias sobre as aventuras do estrelado elenco do filme "Psicose", que foram ao festival em Curitiba. “Fomos ao Canal 4 da TV Iguaçu, onde, no subsolo, funcionavam as instalações do Jornal do Estado do Paraná e da Tribuna. Tivemos acesso ao necrotério do jornal, que era ‘extremamente organizado’, com pilhas e pilhas de caixas amontoadas em um salão imenso”, relata.

O resgate da história do Festival Tribunascope passou por diversos desafios, sendo um dos principais a falta de registros organizados. Vidal Costa relata que o curso de História da UFPR, onde iniciou a pesquisa, não possuía computadores na época. "Nós tínhamos um computador que ficava no meio do corredor e não existia Word. Ele não tinha Windows e usava um programa de edição de texto WordStar, que era toda tela verde com aquelas letrinhas verdes", conta.

No último dia antes da entrega do trabalho, um vírus chamado “ping pong” apagou todo o material. Sem alternativas, o pesquisador solicitou um tempo extra à orientadora e conseguiu que um amigo recuperasse o texto bruto, que veio sem formatação, sem parágrafos, acentos ou pontuação. Todo o conteúdo precisou ser reescrito manualmente antes da impressão e entrega. O trabalho foi aprovado, mas a única cópia foi arquivada pela orientadora Ana Maria Burmester, que faleceu anos depois, resultando no desaparecimento do material.

Em 2018, na tentativa de novamente resgatar a história do Tribunascope e transformá-la em livro, os pesquisadores não conseguiram encontrar a monografia de TCC em acervo pessoal e nem na UFPR, já que monografias de graduação não eram arquivadas na instituição. A única referência disponível era o texto de qualificação do artigo, que Vidal manteve arquivado ao longo dos anos. "Nunca jogue fora nada. Como dizia minha avó, quem não joga fora nada sempre vai ter o que precisa", brinca.

Além das dificuldades acadêmicas, também houve obstáculos na imprensa. O acervo do jornal Tribuna do Paraná, que organizava o festival, foi adquirido pela Gazeta do Povo quando o Estado do Paraná faliu, ficando sob a guarda da GRPCOM. Como esse material não foi integrado ao projeto da Hemeroteca Digital, ele se tornou inacessível para pesquisas.

Os pesquisadores também recorreram à Casa da Memória, onde conseguiram acessar documentos e listas de premiados que não estavam disponíveis em outros acervos. Lá, encontraram informações cruciais sobre os festivais de 1964 e 1965, além de registros publicados em revistas de cinema nacionais fora do Paraná.

O Museu da Imagem e do Som também foi fundamental neste processo. O museu forneceu diversas fotografias que compõem o livro. “Disponibilizamos fotografias do nosso acervo, permitindo que esse resgate fosse feito com a riqueza e a autenticidade que só as imagens da época podem oferecer”, explica Mirele Camargo, diretora do MIS-PR.

HISTÓRIA – A preservação desse tipo de material torna possível reconstruir contextos e entender como o cinema foi utilizado não apenas como expressão artística, mas também como ferramenta de influência cultural e ideológica. Os pesquisadores entendem que o júri do festival se inspirou no modelo europeu que inaugurou o tipo de evento filmográfico. Ao repetir o padrão de festival da época, como o de Veneza (1932), os prêmios refletiam as diretrizes políticas da época. 

Ainda que em contexto e formato diferente ao italiano, o Tribunascope foi divulgado como “Oscar de Curitiba”, sem sessões de filmes, e com intuito de nacionalizar Curitiba que, até então, somava 360 mil habitantes em 1960, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Vidal relembra que o Festival Tribunascope foi criado em 1959 por Júlio Kogut Neto (1931-2020), que assumiu a coluna de cinema da Tribuna do Paraná e decidiu retomar a iniciativa de um festival internacional de cinema em Curitiba. O evento rapidamente ganhou notoriedade ao premiar filmes não apenas nacionais, mas também internacionais. “Nunca imaginaram que fosse algo grande, pensaram que renderia um ou dois eventos no máximo”, conta.

A investigação também trouxe destaque sobre a função profissional de figuras importantes envolvidas no festival. “Tive acesso a material, artigos de jornal sobre o falecimento do Júlio Kogut. E só nesses artigos é que tive a informação da importância dele para o jornalismo curitibano”. A nota cita Kogut como diretor do Serviço de Informação dos Estados Unidos (USIS), e como ganhador de medalha do governo americano entregue na sede da CIA em 1990.

De acordo com nota de falecimento publicada na Tribuna do Paraná e republicada no livro, Júlio Kogut também trabalhou por duas décadas como correspondente do governo americano e diretor do United States Information Agency (USIA), sendo condecorado em 1974 com o Meritorious Honor Awards, pela criação e condução da coluna Panorama das Américas. Esses detalhes ajudam a compor um quadro mais amplo sobre as motivações por trás do festival e seu impacto na cena cultural da época trazidos pela pesquisa.

A história do Tribunascope, antes restrita a poucas lembranças, agora ganha um novo fôlego graças ao trabalho dos historiadores junto ao apoio de acervos como o do MIS-PR. A Editora Factum também preserva a memória de outros 15 livros sobre a história cultural do Paraná.

"AINDA ESTOU AQUI" – Já o filme premiado neste domingo (2) retrata o Rio de Janeiro no início dos anos 1970. Em plena ditadura militar, a família Paiva sofre uma reviravolta quando o patriarca, Rubens Paiva, é levado por militares e desaparece. Sua esposa, Eunice, passa a lutar pela verdade sobre o que aconteceu, além de se ver obrigada a seguir em frente com os filhos.

Baseado no livro biográfico de Marcelo Rubens Paiva, um dos filhos do casal, o filme começa com uma gravação caseira, já estabelecendo o tom e a importância das fotos e vídeos na condução da narrativa. Em uma das cenas mais emocionantes, Eunice, interpretada por Fernanda Torres, revê vídeos antigos da família, de um tempo em que ainda havia paz em sua casa.

Mais do que apenas reconstruir os cenários e figurinos da família Paiva, o uso de fotografias antigas serviu para recriar a estética do próprio Rio de Janeiro dos anos 1970. A memória daquele espaço e tempo foi revivida a partir dessas imagens.

Em diversos momentos, o longa foi montado e estruturado com base em fotografias antigas da família, que foram reconstituídas pelos atores ao longo da trama. Dessa forma, a fotografia, além de contribuir para a ambientação, também colaborou para o desenvolvimento dos personagens e para a lembrança do que foi aquele período.

O filme se apropria de diversas fotos analógicas que, com suas marcas de uso e imperfeições, reforçam a atmosfera da época. A produção dessas imagens ficou a cargo do grupo Lab:Lab, de Curitiba. Em setembro de 2023, a empresa recebeu o pedido da produção de “Ainda Estou Aqui”: criar 22 slides a partir de imagens digitais, utilizadas tanto como objetos de cena quanto em projeções. 

Para Vitor Leite, criador e laboratorista fotográfico do Lab:Lab, o processo de criação se chama “gravação de filme” – que é o oposto do serviço de digitalização. Atualmente, existem apenas três laboratórios no mundo que oferecem este serviço, sendo na América do Sul apenas este de Curitiba.

As fotos que eles receberam da produção para fazer os slides são de dois momentos diferentes: uma delas de diversos fotógrafos sobre a luta indigenista, que no filme foram usadas em uma aula da Eunice, utilizando um projetor de slides. A segunda coleção são as fotos produzidas que refizeram as fotos famosas da família Paiva, que foram utilizadas também na divulgação do filme.

Para Leite, a escolha em usar fotografias analógicas é o que torna o longa cuidadoso com a proximidade com a realidade. “São detalhes sutis que no conjunto fazem a obra ser fiel em representação, cores e texturas”, explica.

Para o laboratorista, as imagens e vídeos são parte importante para a reconstrução da memória. “Acho que o próprio nome do livro/filme explora a ideia de revisitar a memória para ela não ser esquecida e por isso é algo muito caro à ambientação do filme. O cuidado em produzir os slides de verdade, à moda que se fazia durante as décadas que o filme passa, é um preciosismo que no conjunto da obra faz sentido”, defende.

Cada vez mais tem aumentado a demanda de produção analógica, não só fotográfica, mas também para filmes. Leite explica que mesmo o custo sendo maior, o alcance tonal é superior aos sensores digitais, além de uma textura e cores próprias, que justificam o custo maior de produção. No caso de “Ainda Estou Aqui”, ele foi todo gravado em película, sem uso de câmeras digitais de cinema. E mais da metade dos filmes indicados ao Oscar de Melhor Filme esse ano também foram gravados em película.

Atualmente, o Lab:Lab é o maior laboratório da América Latina e o único que oferece revelação para todos os tipos de filmes. Trabalhando com diversos equipamentos de época e processos químicos misturando fórmulas clássicas com outras desenvolvidas por eles próprios, o Lab:Lab completa seis anos de produção e 50 mil filmes revelados, além de digitalizar acervos fotográficos em película de famílias e instituições públicas e privadas.

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