Há 25 anos sóbrio, jornalista ajuda
no tratamento de dependentes

Roberto José da Silva, 65 anos, fala sobre o longo período de vício e depressão, da força para a superação e sobre seu voluntariado na clínica, onde vai todo domingo conversar com os pacientes. “Vou lá para não esquecer”, afirma.
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28/06/2019 - 15:40
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Era noite de 24 de outubro de 1994. Trancado em um hotel no bairro Rebouças, em Curitiba, o jornalista Roberto José da Silva, o Zé Beto, não conseguiu completar o seu trabalho e já não via alternativas a não ser pedir ajuda. Um telefonema a um amigo, depois de um dia inteiro usando cocaína, o levou ao seu terceiro internamento em uma clínica para tratar a dependência química. Seria também o último. Ele se mantém sóbrio desde então e usa a experiência para orientar outros dependentes no enfrentamento ao vício.

No mês em que o Governo do Estado promoveu a campanha Junho Paraná Sem Drogas, que trouxe debates e ações para combater o uso de entorpecentes com foco principalmente em adolescentes e jovens, Zé Beto fala do período em que era dependente e do caminho que percorreu até conseguir superar.

A sorte de “não ter morrido e nem matado ninguém” é lembrada muitas vezes pelo jornalista de 65 anos, que está vivo para contar sua história e também já não faz parte de estatísticas, como a edição mais recente do Relatório Mundial sobre Drogas, divulgado na quarta-feira (26) pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

De acordo com o documento, 35 milhões de pessoas no mundo sofrem de transtornos decorrentes do uso de drogas e necessitam de tratamento. As estimativas, referentes a 2017, mostram um aumento no número de indivíduos que sofrem com o abuso de substâncias químicas e que apenas uma a cada sete pessoas recebe tratamento para a dependência.

RETOMAR A VIDA – Zé Beto é o voluntário mais antigo da Quinta do Sol, clínica onde bateu à porta quase 25 anos atrás para se internar pela terceira vez. É lá que, semanalmente, se reúne com outras pessoas em tratamento para trocar ideias sobre as formas de lidar com a doença. Muito franco em seu blog, no qual intercala comentários políticos com fotografias e relatos sobre seus anos como dependente, ele também dá diversas palestras sobre o tema.

Desde o primeiro gole, com mais ou menos 19 anos, até “retomar o controle da própria vida”, como fala, foram praticamente 20 anos de dependência, primeiro com álcool e depois com a cocaína. O período foi marcado por três internações, alguns momentos de sobriedade e um acidente que poderia ter sido fatal. “Todo alcoólatra que dirige tem acidente. Eu tenho sorte porque nunca bati em ninguém, mas destruí meu carro, um Corcel 77, em um poste. Foi perda total. Só não morri porque quebrou o encosto do banco e eu fui para trás”.

Mesmo o acidente não acendeu o sinal de alerta. “Fui parar no Hospital Evangélico, onde acordei ainda bêbado e briguei com os médicos. Voltei para casa todo costurado e à noite fui beber de novo”, conta. “Na cabeça não entrava que tinha sido por causa do álcool, parece que é algo você coloca de lado”.

O tratamento, para ele, seria um último sopro para continuar vivendo. O vício mascarava um problema maior de depressão. As doses já não eram mais por prazer, mas para enfrentar a dor e o medo do insucesso. “Eu fui [para a clínica] porque não via mais saída. E aí que está o perigo, porque tem gente que não vê mais saída e busca pela definitiva, o suicídio. E já está se matando. O uso para o dependente é um suicídio lento. Por isso falo que sou agraciado, nunca matei ninguém e também não morri”.

E a palavra morte, seja por causa de acidentes ou doenças relacionadas ao vício, o acompanha desde sempre. Primeiro com o pai, também alcoólatra e sofrendo com depressão, e agora com diversos amigos. “Isso acontece direto por causa do álcool. A maioria das mortes de conhecidos e amigos meus não foi por causa de cocaína, de overdose, foi por causa do álcool. Porque é droga lícita, está aí, e a pessoa se acaba de uma maneira ou de outra. É um problema muito sério e ninguém fala nada. Em quase toda família tem alguém mal”.

VÍCIO X TRABALHO – Natural de São Paulo, Zé Beto vive em Curitiba desde 1978, para onde veio como repórter da revista esportiva Placar. O vício no álcool o acompanhou até o fechamento da sucursal da publicação no Paraná, em 1990. “Eu nunca parei de trabalhar, porque tem muita gente que sai fora por causa da bebida. Mas também não sei como trabalhava”.

Hoje, olhando à distância, ele critica a aura que é colocada em algumas profissões com relação às drogas, inclusive no jornalismo. “Nos 24 anos de voluntariado na clínica, vejo que o script é mais ou menos igual para todo mundo. Tem gente que acha que precisa beber, fumar, cheirar para criar, mas esquece daqueles que morreram por causa disso”.

Aliada a isso, a depressão alimentava uma insegurança quanto ao trabalho, que era sufocada com álcool. Cada reportagem era acompanhada de questionamentos sobre a incapacidade de conseguir terminá-la, mesmo com o incentivo dos colegas e superiores. Para superar esse sentimento, acabava bebendo mais.

Foi com o acerto da Placar que ele pagou seu primeiro internamento. O tratamento durou apenas uma semana e o livrou da dependência do álcool, mas não o trouxe à sobriedade. O gatilho para a recaída foi um cigarro de maconha fumado em um acampamento.

A cocaína foi a substância da vez e o acompanhou por cerca de três anos. E se antes era preciso sair da redação para beber, o uso da droga era feito no próprio ambiente de trabalho. Até água da privada e a própria saliva ele chegou usar para injetar a droga.

SÓ POR HOJE – O último tratamento trouxe na esteira o voluntariado na clínica, para onde Zé Beto vai todo domingo participar das conversas com os pacientes. Ele calcula que já conheceu pelo menos 2 mil pessoas nesses quase 25 anos. “Eu vou lá para não esquecer, porque se esquece. Vejo muita gente que começa a ficar melhor com a terapia e acaba voltando a ser dependente”, diz.

“O que é a dependência?”, questiona. “A substância não é necessariamente o problema, mas o que leva a usá-la: é a alma, o emocional. E é com isso que as clínicas trabalham, com a terapia. É preciso se conhecer um pouco. Todos têm medo de olhar para seus monstros, e os alimentam cada vez mais”, avalia.

Só Por Hoje, o lema do grupo Alcoólicos Anônimos (AA), também ajuda o jornalista a continuar sóbrio. Foi em uma reunião do AA na clínica onde estava internado que ele teve o “clique” que trouxe a virada em sua vida. “Naquele dia eu ouvi de uma voluntária essa coisa que todo mundo sabe, mas não tem a dimensão do que é: o Só Por Hoje, um conceito simples e absurdo. Só por hoje não vou mais beber, fumar, cheirar. Amanhã não sei e o para atrás já foi”, diz.

“Eu tento sempre falar com os dependentes, com os quais tenho contato. A minha esperança é que uma hora o cara tenha o clique”, afirma. Falar abertamente sobre o vício – seja com a família, em palestras, voluntariado ou em seu blog – é outro exercício constante para não esquecer. “Não é para a gente esquecer, mas colocar dentro de uma dimensão. Eu tenho uma doença que eu sei que é incurável, eu recaí e sei que isso pode acontecer de novo. A parte boa é que ela é controlável. Cada um tem um jeito e a minha maneira é essa: eu vou à clínica, onde chamar eu falo, eu escrevo, eu tomo meus remédios”, completa.

BOX
Série de vídeos traz depoimentos sobre os problemas causados pelo uso de entorpecentes

Para ajudar na conscientização sobre os problemas causados pelo abuso de substâncias químicas, o Governo do Paraná publicou uma série de vídeos em sua página no Facebook (www.facebook.com/governoparana) com depoimentos de especialistas, ex-usuários e familiares de dependentes.

Com a chamada “As drogas também fazem mal para quem não usa”, os vídeos trazem as falas da psicóloga Cleusa Canan sobre os problemas de saúde pública causados pelas substâncias;

do psicólogo e policial militar Eliton França e do delegado da Divisão Estadual de Narcóticos (Denarc) Ítalo Biancardi Neto.

Também foram compartilhados depoimentos de uma mãe e de um pai  de dependentes. O próprio Zé Beto é personagem de um dos vídeos.

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