O tempo é um detalhe para Ana Maria Ferreira Silva, a bailarina mais antiga em atividade do País, com 68 anos de idade. Ela é a menina aluna da Escola de Dança do Teatro Guaíra (EDTG), a servidora pública do Centro Cultural Teatro Guaíra (CCTG) prestes a completar cinco décadas (setembro) de dedicação ao Governo do Paraná e a veterana de corpo esguio que tem brilhando no G2, a companhia referência nacional dedicada a personagens na plena maturidade artística. Ela é uma das personagens da série de reportagens da Agência Estadual de Notícias sobre grandes mulheres.
Tudo começou quando tinha apenas 10 anos. A garotinha de um olho verde e outro castanho chegava para iniciar o estudo de balé clássico na antiga Fundação Teatro Guaíra. Já na escola ela tinha interesse por participar de qualquer tipo de apresentação que envolvesse dança e a família encontrou no espaço cultural a chance de aproveitar o seu potencial. “Lembro que no jardim de infância tinha procissão de anjinhos e eu queria estar lá na frente. Nasci com isso na minha personalidade”, conta.
Logo nos primeiros contatos da filha de paulistas com os demais nas aulas de dança, a mãe, Adilia Ferreira da Silva, recebeu um conselho da professora. “A Marlene Tourinho falou para a minha mãe para eu não desistir porque tinha talento. Desde aquela época ela sabia que eu estava no caminho certo. Eu sou cria com muito orgulho da Escola de Dança do Teatro Guaíra”, afirma.
A EDTG é o corpo artístico mais antigo do CCTG, fundada em 6 de abril de 1956, e que possui, atualmente, mais de 110 crianças e adolescentes em formação. A escola é mantida pelo governo paranaense e não tem custo aos matriculados.
Antes de terminar o curso de formação, que era de sete anos, Ana foi convidada para estagiar no Corpo de Baile da Fundação Teatro Guaíra, atualmente chamado Balé Teatro Guaíra (BTG), grupo profissional de bailarinos e outro corpo artístico do CCTG financiado pelo Estado e sumidade nacional nos palcos. Ela dançava de forma coadjuvante com os profissionais, viajava pelo Paraná para apresentações e, principalmente, começava a ensaiar o que seriam os próximos passos da sua vida.
“Sempre gostava de chegar cedo, me aquecer, alongar e observar as bailarinas mais velhas. Isso me mostrou que na vida você tem que observar e ter disciplina, tem que ter escolhas, e você as faz porque vai conseguir mais alguma coisa dentro da sua profissão”, assinala.
E Ana conseguiu tudo o que almejou, marcou todos os quadradinhos com um check na prova da vida. De aluna de dança da EDTG a bailarina master do G2 Cia. de Dança – posição atual –, Ana usou o seu corpo para expressar (e gerar) sorrisos. "Acho maravilhoso ser mulher. Todas nós podemos ter a nossa história", completa.
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BAILARINA SERVIDORA – A dança era a protagonista da sua vida em 1973, quando tinha quase 20 anos, mas o dia 24 de setembro daquele ciclo ficou marcado na sua carreira porque adicionou o componente profissional ao dia a dia: foi nessa data que ela foi contratada como servidora pelo governo paranaense para integrar o BTG.
Ela passou por bailarina de corpo de baile, solista B, solista A e chegou a bailarina principal. Carlos Trincheiras, então diretor do BTG na época, a convidou para o papel principal do espetáculo “Da vida e da morte de uma mulher só”, em 1981. “Foi um momento mágico, porque eu estava sentada, ele estava montando uma peça, e me chamou. Foi aí que consegui a minha ascensão”, afirma.
Ana também participou como solista em "O Grande Circo Místico", obra icônica da dança brasileira, que completou 40 anos da estreia no CCTG no último 17 de março. O coreógrafo da versão original, com base na música composta por Chico Buarque e Edu Lobo, era o mesmo Trincheiras.
No Teatro Guaíra, a servidora ainda desempenhou funções de maitré de dança (direção dos bailarinos ou dançarinos do corpo de baile), ensaiadora e assistente de direção. Na criação do curso de formação de jovens no CCTG, Ana também virou a primeira professora de uma turma masculina de bailarinos.
BAILARINA EM CASA – A carreira só chegou nesse ponto após alguns saltos. Vencer a resistência do pai quanto à carreira, fazer escolhas com assertividade e ultrapassar o etarismo na profissão foram alguns dos obstáculos superados.
Na infância e adolescência, precisou quebrar a resistência da casa. “O meu pai não queria, falava algo como 'o que meus amigos vão falar sobre minha filha bailarina', mas com a ajuda da minha mãe, que bateu o pé firme, cheguei aonde realmente eu queria”, diz. A mãe, com 91 anos, ainda a assiste no palco.
No começo da juventude, quando já trilhava carreira profissional no BTG, recusou um pedido de casamento em prol da dança e trocou uma carreira profissional na Europa pela carreira no Guaíra. “Não quis ir para a Bélgica porque decidi escrever minha história no Paraná, sou bicho daqui. E essa está sendo a minha história, minha realização. Não me arrependo de nada”, conta.
No século passado, se manter profissionalmente na área cultural ainda era uma novidade e também representou um desafio. “Era um momento em que não existia a estrutura como hoje, viajávamos de Kombi, o pessoal no Interior encerava os pisos. Tivemos que mostrar o que realmente o bailarino precisava, as condições de palco, estabelecer alguns critérios e evoluir no exercício diário. E sem os meios de comunicação desse século era tudo mais complexo. Mas valeu a pena e aos poucos os corpos artísticos do Guaíra ganharam os corações dos brasileiros”, diz.
BAILARINA PIONEIRA – E a permanência dela na atividade é uma provocação ao etarismo, discriminação baseada em critérios de idade, que ganhou as redes sociais nas últimas semanas após deboches em uma universidade. “Todo mundo diz que a durabilidade do bailarino é de 34 anos. Ledo engano. Provamos na prática que não”, afirma.
Ela ajudou a fundar o primeiro grupo master de bailarinos do Brasil, em 1999, o G2. Ana é a bailarina com mais idade, de um grupo de nove, em que o mais novo tem 57 anos.
“A carreira não pode ser interrompida por algo ou alguém. Nós precisamos ter essa escolha. Não vamos ter o virtuosismo de um jovem. Não fazemos pirueta, porque a idade chega para todo mundo, mas um movimento que caiba para o corpo de agora, que tenha dignidade e que consiga mostrar um trabalho bonito”, diz.
Para isso, o G2 Cia. de Dança – quarto corpo artístico criado pelo CCTG – precisou se estruturar fisicamente, recorrer a mais aulas contemporâneas e ioga. Hoje em dia, o G2 desenvolve trabalhos de dança-teatro, que acontecem tanto no CCTG, em Curitiba, quanto em palcos de outras cidades paranaenses.
AINDA BAILARINA – Com um amor visível pela dança e um corpo experimentado no balé clássico e contemporâneo, a última pergunta que a servidora quer responder é sobre o final de carreira. “Ainda estou refletindo porque tudo tem seu começo, meio e fim. Já estou pensando que devo deixar para os outros um legado. Mas ainda não tenho resposta”, conta.